segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Verdadeira História está Dormindo


Rafael Santana

Não há mistérios em perceber a anti-leveza do dia. Os desagradáveis despertadores sinalizam a corrida matinal. Destroem o equilíbrio satisfatório do sono e retiram-nos de nossos próprios ventres. O relógio é perverso, é um feitor que chicoteia através de ponteiros. Eles ditam o ritmo da sociedade moderna, agendam-nos em horas exatas, aceleram-nos através dos cronômetros, entristece-nos no fim do ciclo. É uma das mais fantásticas invenções humanas, laçamos o tempo no pulso. Penduramos o tempo nas paredes.
O Homem saboreia a divina sensação de “dominá-lo", infelizmente, toda criação humana foi na realidade um processo de aprisionamento, de auto-dominação, ou melhor, um auto-flagelo cicatrizado. Imaginamos Ulisses controlando sua natureza, é, pois, todo homem moderno. Não há nada mais selvagem que o tempo. E os burgueses como sábias criaturas das financias utilizaram a soberba humana com a mais maléfica racionalidade, tempo é dinheiro.
Ao trabalhador recorre-se somente a dor das contorções, dos efeitos do cotidiano, das insuficiências familiares, dos paladares neutros, da mente perturbada, do desejo do ter, da ausência do ser. Nada mais lastimável do que qualquer peste bubônica, ou qualquer epidemia mundial é esta doença moderna, essa melancolia, essa falta de passado. O relógio moderno só anda para o futuro. E para onde vai toda referência?  
Estamos entrando num processo de a-historicidade. Não quero dizer com isso que os fatos extraordinários são as únicas importâncias ao estudo da História, ou que, o cotidiano e as especificidades nada representem, não se trata disso. É na realidade a constante e progressiva insatisfação, indiferença e menosprezo aos estudos históricos. Esse processo de esquecimento diário deixa-nos feliz como qualquer outro animal ao fim de uma refeição. O Homem civilizado está colocando antolhos. Não há maior potencialidade ao conformismo. Bagunçar o passado é dissolver as ataduras da dominação, é o primeiro passo para a mudança, para as realizações. É o inicio dos questionamentos, da dúvida. Essa depreciação da História é fruto do cotidiano que nos impele de pensar.
Entretanto, não podemos exigir dos infelizes que ao fim do dia lamentam-se das poucas horas de sono. Guardam para si os desejos do futuro e os espiritualizam no plano solúvel do sonho. Estas são na realidade as virtualidades históricas, daquilo que se quer, que nunca foi e que provavelmente nunca será. A verdadeira História desses homens hiberna com sua fadiga. Ou melhor, sob os dizeres do filosofo Walter Benjamin em sua belíssima obra Experiência e Pobreza: Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças.  

8 comentários:

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  2. Lembrei-me do historiador Edward Gibbon, que agradece em sua biografia ao fato de ter nascido em “boa” família, pois caso contrário, iria ser um pobre trabalhador que chegaria cansado em casa ao final do dia e, portanto, não teria condições físicas, mentais e financeiras para dedicar-se aos seus estudos históricos, presenteando-nos com “Declínio e Queda do Império Romano”.
    Na sociedade atual, ter posses, ou mais precisamente ter o dinheiro é uma graça. “Tempo é dinheiro”. O tempo passa e é preciso produzir o mais rápido possível. A rotina tira o prazer do trabalhador. Tira a oportunidade de ver beleza ao nascer do dia. O dia começa trazendo as obrigações cotidianas. O trabalhador cansado vê beleza apenas no pôr do sol. Não pela contemplação, mas pelo seu significado. Ele torna-se animalizado, não se importa. Não se pode afirmar que assim o faz por opção.
    O final do expediente significa o início de uma liberdade deficiente. A liberdade se faz dentro de casa. O dormir é um ato esperado ansiosamente.
    O relógio dita o tempo e o tempo é falsamente dominado por aqueles que criaram tal invento. Imagine uma pessoa sem relógio, em uma metrópole. O caos passaria a existir. Como saber dividir as horas? Quando acordar?
    A sociedade atual, é do agora e ao mesmo tempo do porvir. É a sociedade da construção. Do produzir, do ganhar. Perde-se muito com isso. O tempo é tão escasso e dividido em obrigações que nada sobra para se importar com todo o resto. Para que perder tempo estudando o passado? Para que perder tempo importando-se com ele? Para nada. Para tudo. Para dar o grito de resistência necessário. “Bagunçar o passado é dissolver as ataduras da dominação”.
    Saindo do sonho e acordando para a realidade, mexer neste passado não é, digamos prioritário superficialmente, pois não se tem condições favoráveis devido a uma série de fatores, mas tal atitude é, por ser tão esclarecedora e difícil, valiosamente louvável.

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  3. Fantástico Wayne, é bom poder conversar com vocês, de ser entendido, e de poder criar possibilidades de questionamentos. São certas absorções da realidade infelizes que temos que fazer.

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  4. Gostei demais do texto. Adoro quando tocam no assunto TEMPO. Realmente muito inquietante. Indispensável para esse diálogo é o grande sociólogo alemão Nobert Elias, que tive uma vez o prazer e a oportunidade de lê-lo. Preenche bastante quando o sociólogo diz que o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como odor. É muito intrigante isso para com as cabeças que bebem e que são padronizadas pela contemporaneidade, diga-se de passagem, principalmente, para com os não-especialistas ou os que preferem ficar do lado da camada "leprosa" da nossa sociedade, bebendo do suco da "cultura do agora" sem ser peneirado ou não se preocupando se ele é passível de beber. Enfim, outro norte que poderia ser dado é no que concerne aos "relógios", nominados como os mensuradores do tempo. No entanto, esses "relógios" são apenas processos físicos que a sociedade padronizou, engessou, metrificou, decompondo-os em sequências-modelo de recorrência regular, como as horas ou os minutos. E claro, são produtos dos de cima, dos que vivem do alto, dos que ditam e por empatia e conivência se elegem a estirpe cavalheiresca-aristocrática e tapam os ouvidos dos que vivem em situação de runa (não vou falar malogrados), e esquecem todo o maquinário que construíram e por um entendimento não-entendido se fazem o posto mais elegante e esclarecido para nominar (seja lá o que for). Finalizando, o tempo também tem seus cortejos, porque sua própria problematização e pontuamento o faz preenchedor de qualquer diálogo sobre as H(i)/e-stórias. É isso aew Rafael Santana, Carpe Diem para o tempo de HOJE, ou do AGORA.

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  5. Fenomenal Rafael! Tem o que julgo essência em um bom texto, ele tem: a "fácil leitura". Que é, para mim, quando um texto bem escrito - formal e rebuscado - passa de forma precisa as informações desejadas. Nesse texto em particular, passa também os sentimentos seus. Quão contraditório é ler isso com sua assinatura. Minha melhor forma de explica essa sensação de contradição é dizer que se eu lesse esse texto com a assinatura de Matheus Martins eu não teria essa sensação. A propósito, queria comentar a respeito dessa a-historicidade, talvez tirar uma dúvida, mas vai ficar pra outra hora, o "selvagem tempo" me manda pra aula. abraço

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  6. Valeu Edu, agora, deixe das suas coisas, que se você escrevesse não faria real diferença nas nossas assinaturas. Estamos todos respirando a mesma fumaça intelectual, hehehe. Seu PM. hahaha Abraços.

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  7. Gostei bastante seu texto amigo Rafael. Penso que vivemos em um tempo onde a perca da tradição é algo assustador e para mim nocivo. Quando me refiro a esta perca da tradição não me remeto a um desapego ao conservador, nem tampouco quero defender estes ideais. Para mim, a perda do tradicional é justamente o que o amigo chama de a-historicidade, onde o passado - assim como o presente - virou totalmente descartável. Ousamos esquecer o passado e nos colocamos sempre como produto unicamente do presente. No entanto, a verdade é que nos construímos justamente nesta relação de permanência e mudança, pois a novidade do presente jamais existiria sem influências anteriores. Apesar disso, nossa sociedade tenta a cada dia, lutar a favor do desapego a história, tentando distanciar-nos dela e de sua relação com o presente, tirando as funções que esta ciência possui.
    No texto, o amigo também aborda a questão do aprisionamento que o tempo, uma criação humana, há em seus próprios criadores. Digo que para mim, isso tem todo o sentido. O homem moderno desejaria com certeza que o dia tivesse 48 horas, pois 24 são muito pouco diante da correria dos tempos atuais. Refletir nestas horas do dia é privilegio de poucos. Na verdade esta criação humana funciona como um parâmetro não humano de nossos relógios biológicos individuais. "Na modernidade, o ciclo natural da vida deixa de ser a referência para se medir o tempo, que passa, cada vez mais, a ser calculada com exatidão matemática". (D'ANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. Estud. av. [online]. 2006, vol.20, n.56, pp. 237-250. ISSN 0103-4014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142006000100016.).

    Nobre Rafael, lembro neste momento, que o tempo também representa “poder”, e tê-la em seu controle significa subjugar outros. Lembrei quando li seu texto da revolução francesa, onde, os relógios são quebrados e é instalada uma nova forma de marcar o tempo. Nas palavras de Walter Benjamin:

    "A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres".

    Entendo com isso, que ser dono do tempo ou acreditar ter o controle sobre a mesma nos traz a sensação de estar no comando. Acabar com o tempo de uma ordem antiga simbolicamente é terminar sua era. Que venham novos textos meu caro e viva a História!

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  8. Acabei de ler o texto e achei muito bom! O interessante é que compartilhamos com a mesma visão sobre o tempo! Antes de ler seu texto, havia colocado uma posição sobre o tempo e o controle social por ele exercido. O pecado capital da ganancia está ligado ao tempo, onde o desejo compulsório de possuir mais a cada dia torna-se viciante. O acumulo de atividades que vc acha que vai dar conta. Perder horas de sono fazendo algo, achando que em um futuro teremos tempo para fazer o que desejamos. Aí é que tá a chave da questão; Perdemos nossa juventude achando que no futuro próximo (que na verdade é distante) estaremos livres desse controle, e temos apenas alguns momentos (isso quando eles existem) em que nos marcam, como uma referencia. Lembrando que isso acontece com as massas oprimidas, carentes, trabalhadoras. O tempo tambem serve para perpetuar aqueles que estão no topo, alienando as massas e por fim consolidando a estrutura. Para isso serve a intelectualidade, a tecnologia, Enfim... Excelente texto de uma linguagem parnasiana, porem de facil leitura e de uma alta interpretabilidade! Parabens!

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