sábado, 14 de abril de 2012

Traçar o Dia e Contemplar o Inimaginável

Por Rafael Santana

         Longe de qualquer obrigatoriedade de conclusão, este texto, foi pensado a partir de uma inspiração indesejável. “Quem imaginava que estaríamos aqui no fim do dia?" A frase de um amigo lamentava o acaso de estarmos num hospital, quando, provavelmente, deveríamos estar na Universidade. Este texto é a materialização de um dia conturbado. Consertando os dizeres do senso comum: O futuro ao acaso pertence. Obrigado a Anderson Rodrigues, Wayne Rodrigues, Matheus Amilton e Rodrigo Lemos.

A capacidade de dominar o instante em que as ações se submergem é o que transforma o animal em humanidade. Negar a si mesmo é sentir o desprazer glorioso de ser superior. Não deixar ser totalmente engolido pelo agora é o que nos difere da natureza. Planejar, relembrar, memorizar, esquecer, representar, objetivar... Ser, não é se não um ininterrupto ter sido. Uma coisa que vive de se negar e de se contradizer a si própria. As palavras de Nietzsche, talvez, expliquem a importância do marco representativo da experiência humana que é absorver o passado. É, foi, será. O tempo não é desconectado, os minutos se comunicam, as horas se entrelaçam.

            A noite é para o Homem moderno o momento do esclarecimento, da reposição, do fim ao recomeço, projetar o outro dia é a sua função. A lógica contemporânea nos obriga a delimitar nossas ações de acordo com o inicio e fim do tempo mercadológico. Criticar passou a ser mérito dos ociosos. Computa-se cada caminho que fazemos, cada coletivo que nos transportam, cada prazer que desprezamos. As paisagens são retratos do cotidiano, contemplá-las não é mais o deleite do viajante, mas desgosto do rotineiro. É no descanso que se planeja o cansaço do amanhã.

O dia é um grande enredo teatral. Eles são por inteiros, em Aristóteles, constituídos de começo, meio e fim. Os enredos bem constituídos, portanto, não devem começar nem terminar num ponto qualquer, ao acaso, mas servir-se dos princípios referidos. Pensar as tragédias sobre o caráter das peripécias, predizer a vida sob a identidade do devir, daquilo que altera as ações, que danifica o pré-estabelecido, é fazer dessas narrativas um diálogo incompreensível. É necessário então, para a beleza da obra residi-la sobre a ordem, a História passa a ter com a ajuda cristã um enredo completo.

            A História tradicional foi escrita à noite sob a luz artificial da razão técnica. O desgaste da narrativa positivista é justamente a incapacidade de perceber o que está fora da rotina, do que está além do alivio que representa os agendamentos. O historiador tradicional repousa na repugnância única em pensar a diferença, em descrever os afastamentos, em desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico. (Foucault. Arqueologia do Saber).

            A civilização é um grande palimpsesto, poucos conseguem perceber o oculto dentro da oficialidade, as versões negadas, as frases transparentes, as vozes sem legendas e inaudíveis. A cidade moderna é fruto da projeção noturna dos racionalistas. Limpeza, perfeição, ordenação, cotidiano, hábito, série, todas essas palavras são sinônimos da mesma agressão. A História residia nestes ambientes, ou então, nas gloriosas lutas que representavam o fardo do homem branco. O dia nos revela aquilo que podemos ver, que é transparente, comportado, que destrói toda potência.

            A função dos historiadores foi por muito tempo escrever uma história dos bem-educados, talvez, pudéssemos denomina-la como a propaganda das nações. Uma linguagem simbólica que relembrasse os feitos dos nossos governantes. O conhecimento residia nestes locais limpos e corteses. A verdade é uma soberba que não frequenta as imundices, ir além da iluminação artificial é perder-se. A madrugada da cidade é palco de protagonistas desconhecidos, as prostitutas, os mendigos, os vagabundos, os marginais, os estratificados.

Todas essas coisas não podem aparecer na luz da Razão. Elas são tão necessárias ao seu estabelecimento quanto protagonistas de sua própria destruição. Negá-las é a necessidade do continuísmo, aflorar sua existência é questionar a perfectibilidade, o progresso, a beleza. Hoje, não podemos mais ser absorvidos pela ligeireza das necessidades capitalistas, ou ainda, sermos meras peças do projeto lógico. Devemos escavar as vozes atropeladas pelo texto oficial. Decodificar o que sobrou da unidade. O que não aparece no dia, mas que se esconde da noite não iluminada.