quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Narrar o passado, construir inquietudes e ampliar o inacabado

Por: Estevam Machado

             A desumanidade da realidade nos obriga às vezes a optar por caminhos sinuosos ao contar determinadas situações, andando pela tangente e evitando chegar a essa conclusão: A vida nua e crua é cruel. O choque, às vezes, ao invés de pedagogo é o instrutor do caos. Apaziguamos nossos instintos selvagens com um vocabulário manso e pouco perturbador e acabamos falando amenidades. O narrar exige um interlocutor e ninguém quer ser um primo Levi.
            Teimo, portanto em me perguntar: Por que escrevemos história? Qual motivo, o sentimento que nos move a narrar sobre o que muitos não se interessam em ouvir? Reflito sobre este fragmento de Löwith:
“O futuro é o ponto nuclear da história, pressuposto que a verdade assente no fundamento religioso do ocidente cristão, cuja consciência histórica é determinada pelo motivo escatológico: de Isaias até Marx, de Santo Agostinho até Hegel, e de Joaquim até Schelling. A significação dessa direção do olhar voltado para o fim último, como fins e como telos consiste em que ela proporciona um esquema de ordem progressiva e de dotação de sentido que pôde superar o antigo temor do fatum e da fortuna[1]
            As religiões e ideologias estão cada vez mais desacreditadas, assim os sentidos creditados por elas à história caem por terra diante de investigações racionais. O sentido teleológico da história, desacreditado, nos força a pensar em novas possibilidades, estamos entregues à fortuna, ao acaso, e o medo tem de ser superado com a nossa razão iluminadora.
            Escrevemos história não pelo passado, nem pelo presente, não sentimos os sentimentos dos antigos, nem nossa vida no presente nos dá muitos subsídios para querer escrever o que muitos não querem ler – e não há frustração maior do que ser um escritor não é lido –, escrevemos história por que temos esperança.
            Temos esperança de legar aos nossos descendentes o que ainda não foi comido pelas traças, nem destruídos pelos poderosos, transmitimos aos que virão a nossa memória e a memória dos antigos. A história é uma prova de amor às novas gerações, lembro, portanto, de Antônio Paulo Rezende: “A história é escrita para que o amanhã aconteça. Ela é semente e ousadia diante das subtrações que se aceleram nos instantes de velhice.”[2]      



[1] LÖWITH, Karl. Weltgeschihte und Heilgeschehen. Stuttgart, Berlin, Köln, Mainz: Koohlhammer, 1979, p.125s.
[2] REZENDE, Antônio Paulo. Ruídos do efêmero: histórias de dentro e de fora. Editora universitária UFPE, 2010

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Verdadeira História está Dormindo


Rafael Santana

Não há mistérios em perceber a anti-leveza do dia. Os desagradáveis despertadores sinalizam a corrida matinal. Destroem o equilíbrio satisfatório do sono e retiram-nos de nossos próprios ventres. O relógio é perverso, é um feitor que chicoteia através de ponteiros. Eles ditam o ritmo da sociedade moderna, agendam-nos em horas exatas, aceleram-nos através dos cronômetros, entristece-nos no fim do ciclo. É uma das mais fantásticas invenções humanas, laçamos o tempo no pulso. Penduramos o tempo nas paredes.
O Homem saboreia a divina sensação de “dominá-lo", infelizmente, toda criação humana foi na realidade um processo de aprisionamento, de auto-dominação, ou melhor, um auto-flagelo cicatrizado. Imaginamos Ulisses controlando sua natureza, é, pois, todo homem moderno. Não há nada mais selvagem que o tempo. E os burgueses como sábias criaturas das financias utilizaram a soberba humana com a mais maléfica racionalidade, tempo é dinheiro.
Ao trabalhador recorre-se somente a dor das contorções, dos efeitos do cotidiano, das insuficiências familiares, dos paladares neutros, da mente perturbada, do desejo do ter, da ausência do ser. Nada mais lastimável do que qualquer peste bubônica, ou qualquer epidemia mundial é esta doença moderna, essa melancolia, essa falta de passado. O relógio moderno só anda para o futuro. E para onde vai toda referência?  
Estamos entrando num processo de a-historicidade. Não quero dizer com isso que os fatos extraordinários são as únicas importâncias ao estudo da História, ou que, o cotidiano e as especificidades nada representem, não se trata disso. É na realidade a constante e progressiva insatisfação, indiferença e menosprezo aos estudos históricos. Esse processo de esquecimento diário deixa-nos feliz como qualquer outro animal ao fim de uma refeição. O Homem civilizado está colocando antolhos. Não há maior potencialidade ao conformismo. Bagunçar o passado é dissolver as ataduras da dominação, é o primeiro passo para a mudança, para as realizações. É o inicio dos questionamentos, da dúvida. Essa depreciação da História é fruto do cotidiano que nos impele de pensar.
Entretanto, não podemos exigir dos infelizes que ao fim do dia lamentam-se das poucas horas de sono. Guardam para si os desejos do futuro e os espiritualizam no plano solúvel do sonho. Estas são na realidade as virtualidades históricas, daquilo que se quer, que nunca foi e que provavelmente nunca será. A verdadeira História desses homens hiberna com sua fadiga. Ou melhor, sob os dizeres do filosofo Walter Benjamin em sua belíssima obra Experiência e Pobreza: Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças.  

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Proferindo o Pragmático, Sussurrando por Doces Acasos


                                                                                                                                  Wayne Rodrigues

Traçar o dia e contemplar o inimaginável...

Traçar o dia e contemplar o inimaginável...


O belo título quase faz esquecer-me de algumas coisas. Quase me faz acreditar que se trata de mais um bom texto seu (Rafael). Porém, você trata logo mostrar que não na dedicatória. É mais que um bom texto. É a transformação de algo ruim em algo afável. Canalizando experiências.
Por melhor que o texto esteja – o segundo e terceiro parágrafo estão perfeitos, já lhe disse várias vezes isto, eu preferiria que o fato inspirador nunca tivesse ocorrido. Acho que você me entende.

A História, indo mais a fundo, é mesmo a construção das possibilidades. Do esperado e do inesperado. Ambos se confundem e a mistura dos dois a completa, ou mesmo a forma. Não só ela, mas a vida. E o que é História se não a interpretação da vida (humana) e suas implicações? Dos acontecimentos, sejam eles grandiosos ou os vistos como banais. O historiador assume a responsabilidade de registrar e interpretar tais fatos e o faz a seu modo. De acordo com suas convicções, sua formação, seus interesses. Descreve, interpreta, destaca. Acentua propositalmente o que julga importante.

O criticar, o pensar diferente, acaba sendo um doce dissabor que perpetua a magia histórica. Tal ofício, então, faz-se essencial.

Traçar o dia é tarefa das mais comuns na vida. É algo extremamente indispensável nos atuais padrões de vida. A vida é o planejar. Contemplar o inimaginável pode ser tarefa inimaginavelmente inesperada. Poucos conseguem refletir sobre o acaso previamente. E, consumado o acaso, pensar sobre ele nem sempre é tarefa das mais confortáveis. O homem prefere, para conseguir viver, para caracterizar-se como tal, não esperar o inesperado. Negá-lo é o que se faz, mesmo torcendo escondido, talvez à noite, para que, se vier, venha como bons acasos. Fato muito compreensível. É mais cômodo planejar. Mais humano.

“A História é imprevisível”, não sei quem falou, mas creio que seja verdade. Na verdade, na vida e na Historia (que aqui acabam se confundindo, talvez) não sabemos o que, de fato, aconteceu. Imaginamos, inventamos verdades e mentiras a todo instante. Construímos eventos. Tampouco sabemos o que vai acontecer. Planejamos com os dedos cruzados. Torcendo então para que boas surpresas venham e acrescentem benesses.

sábado, 14 de abril de 2012

Traçar o Dia e Contemplar o Inimaginável

Por Rafael Santana

         Longe de qualquer obrigatoriedade de conclusão, este texto, foi pensado a partir de uma inspiração indesejável. “Quem imaginava que estaríamos aqui no fim do dia?" A frase de um amigo lamentava o acaso de estarmos num hospital, quando, provavelmente, deveríamos estar na Universidade. Este texto é a materialização de um dia conturbado. Consertando os dizeres do senso comum: O futuro ao acaso pertence. Obrigado a Anderson Rodrigues, Wayne Rodrigues, Matheus Amilton e Rodrigo Lemos.

A capacidade de dominar o instante em que as ações se submergem é o que transforma o animal em humanidade. Negar a si mesmo é sentir o desprazer glorioso de ser superior. Não deixar ser totalmente engolido pelo agora é o que nos difere da natureza. Planejar, relembrar, memorizar, esquecer, representar, objetivar... Ser, não é se não um ininterrupto ter sido. Uma coisa que vive de se negar e de se contradizer a si própria. As palavras de Nietzsche, talvez, expliquem a importância do marco representativo da experiência humana que é absorver o passado. É, foi, será. O tempo não é desconectado, os minutos se comunicam, as horas se entrelaçam.

            A noite é para o Homem moderno o momento do esclarecimento, da reposição, do fim ao recomeço, projetar o outro dia é a sua função. A lógica contemporânea nos obriga a delimitar nossas ações de acordo com o inicio e fim do tempo mercadológico. Criticar passou a ser mérito dos ociosos. Computa-se cada caminho que fazemos, cada coletivo que nos transportam, cada prazer que desprezamos. As paisagens são retratos do cotidiano, contemplá-las não é mais o deleite do viajante, mas desgosto do rotineiro. É no descanso que se planeja o cansaço do amanhã.

O dia é um grande enredo teatral. Eles são por inteiros, em Aristóteles, constituídos de começo, meio e fim. Os enredos bem constituídos, portanto, não devem começar nem terminar num ponto qualquer, ao acaso, mas servir-se dos princípios referidos. Pensar as tragédias sobre o caráter das peripécias, predizer a vida sob a identidade do devir, daquilo que altera as ações, que danifica o pré-estabelecido, é fazer dessas narrativas um diálogo incompreensível. É necessário então, para a beleza da obra residi-la sobre a ordem, a História passa a ter com a ajuda cristã um enredo completo.

            A História tradicional foi escrita à noite sob a luz artificial da razão técnica. O desgaste da narrativa positivista é justamente a incapacidade de perceber o que está fora da rotina, do que está além do alivio que representa os agendamentos. O historiador tradicional repousa na repugnância única em pensar a diferença, em descrever os afastamentos, em desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico. (Foucault. Arqueologia do Saber).

            A civilização é um grande palimpsesto, poucos conseguem perceber o oculto dentro da oficialidade, as versões negadas, as frases transparentes, as vozes sem legendas e inaudíveis. A cidade moderna é fruto da projeção noturna dos racionalistas. Limpeza, perfeição, ordenação, cotidiano, hábito, série, todas essas palavras são sinônimos da mesma agressão. A História residia nestes ambientes, ou então, nas gloriosas lutas que representavam o fardo do homem branco. O dia nos revela aquilo que podemos ver, que é transparente, comportado, que destrói toda potência.

            A função dos historiadores foi por muito tempo escrever uma história dos bem-educados, talvez, pudéssemos denomina-la como a propaganda das nações. Uma linguagem simbólica que relembrasse os feitos dos nossos governantes. O conhecimento residia nestes locais limpos e corteses. A verdade é uma soberba que não frequenta as imundices, ir além da iluminação artificial é perder-se. A madrugada da cidade é palco de protagonistas desconhecidos, as prostitutas, os mendigos, os vagabundos, os marginais, os estratificados.

Todas essas coisas não podem aparecer na luz da Razão. Elas são tão necessárias ao seu estabelecimento quanto protagonistas de sua própria destruição. Negá-las é a necessidade do continuísmo, aflorar sua existência é questionar a perfectibilidade, o progresso, a beleza. Hoje, não podemos mais ser absorvidos pela ligeireza das necessidades capitalistas, ou ainda, sermos meras peças do projeto lógico. Devemos escavar as vozes atropeladas pelo texto oficial. Decodificar o que sobrou da unidade. O que não aparece no dia, mas que se esconde da noite não iluminada.

terça-feira, 13 de março de 2012

Arquitetura da Destruição – A Arte da Guerra


Rafael Santana Bezerra



            Se um dia fosse possível fazer uma história das ideias globalizantes perceberíamos como ela estaria repleta de violência e sangue. A II Guerra Mundial foi o palco onde mais uma proposta de perfeição revelou a catástrofe das ideologias etino-centristas. O Nazismo mergulhou no engano de absorver as máximas do progresso técnico ao mundo social e orgânico. Arianismo na Alemanha do inicio do Século XX era sinônimo de pureza.

            A proposta política e social do nazismo era claramente estabelecida. A limpeza racial era o motor do desenvolvimento humano e econômico, eliminar os judeus e os incapazes era essencial para retirar da Alemanha o seu status coadjuvante no panorama mundial. O Arianismo foi se constituindo como o modelo de homem perfeito, é a ideia da perfectibilidade do gênero humano. Hitler aliou-se a uma gama de cientistas, arquitetos, músicos, médicos, juntos construíram um projeto de um novo Império Alemão. Criou-se uma medicina que desejava afastar do corpo perfeito os males contagiosos, eliminar os incuráveis.

            O Expressionismo revelava ao mundo os seus próprios problemas, é a arte do mal-estar da civilização, é a expressão da dor, da guerra, da desilusão ante o progresso técnico e cultural. Aos nazistas o Expressionismo ganhava o caráter de arte degenerada, era a produção dos não racionais, dos incapazes, dos judeus, dos sujos, dos não arianos, uma arte que deveria ser banida de todo o “império germânico”, a contaminação através das imagens pintadas pelos “alienados” era perigosa e colocava em risco o projeto de uma nova e superior Alemanha. 

A fantástica histeria do povo alemão foi fruto, sobretudo, das incisivas políticas de propaganda do partido nazista. Hitler mostrava aos alemães que o futuro era uma catástrofe singular, e que o nazismo era a única saída vitoriosa, eles eliminariam os impuros e retirariam os arianos da decadência. O documentário sueco do diretor Peter Cohen percorre essa estratégia metodológica de recriar a mentalidade do povo adepto às ideologias nazistas através das antigas propagandas. Os Judeus eram denominados ratos e deveriam ser destruídos, eram responsabilizados pela desonra, pela sujeira, pela destruição da civilização germânica.

A luta de classes deveria ser banida do mundo econômico, a ideação do bem-estar social germânico perpassava quase que inevitavelmente pela própria limpeza do trabalho. Condicionar ao proletariado alemão condições de limpeza, salários, resumidamente, desejava-se o fim das insatisfações trabalhistas a partir da purificação do trabalho.

            “Arquitetura da Destruição”, antes de se constituir como um documentário de análise político-econômico da II Guerra Mundial é uma bela sugestão de inovação metodológica para a escrita da história. O filme analisa os projetos arquitetônicos de Hitler, as suas preocupações com uma definição de belas artes, de uma maneira geral, denúncia às inquietações nazistas com a estética.

Uma gama de material projetado por Hitler é revelada no filme, ela nos dá a sensação de uma contrariedade histórica, nos, propõe, salve as incertezas do acaso, “o que poderia ter sido”. As plantas arquitetônicas demonstram o desejo do grande império, talvez, os escandalosos monumentos configurem-se como o simbolismo da vitória, da perfeição. O documentário é uma bela narrativa das utopias, dos desejos sádicos e imperialista do mundo nazista, é uma descrição dos projetos, das intenções, das mentalidades.

O filme, entretanto, cai no erro de ignorar o ódio dos nazistas pelos comunistas e partidários de esquerda. Estes foram juntamente com homossexuais, deficientes, negros, ciganos, judeus, alvos do projeto de pureza. A limpeza orgânica misturava-se com as abstrações políticas, fazia-se na realidade uma limpeza à contrariedade da ordem nazista e burguesa. O título de artista frustrado para Hitler é um eufemismo à sua arte de destruir.  

            O documentário de Peter Cohen nos propõe, talvez, muito implicitamente os perigos da má interpretação do conhecimento histórico. Hitler mergulha numa empatia perigosa pelas civilizações gregas, romanas e espartanas, uma simpatia que privilegia as ações militares e universalizantes desses povos. Este é, quem sabe, o maior perigo do historicismo, apaixonar-se pelos vencedores e basear-se nas mesmas atrocidades do passado.
            




sábado, 11 de fevereiro de 2012

O coiote e o papa-léguas

                                                                                                Por: Estevam Henrique Machado

Em algum deserto, o coiote está armando uma armadilha pra pegar o papa-léguas. Pode-se dizer que da mesma maneira nesse mesmo instante, algum historiador, em alguma parte do globo está debruçado por entre arquivos procurando as respostas para seus questionamentos.  De certo a triste estória do coiote faz-nos sensibilizar com o vilão que mesmo com todas as suas artimanhas comove o público quando é revelada a sua sorte.
            Podemos atribuir esse personagem ao historiador, pois, pela sede por explicações racionais/plausíveis para entender o desenrolar dos acontecimentos pretéritos utiliza diferentes metodologias – verdadeiras arapucas dignas das empresas ACME – com o intuito de revelar o passado ao leitor/estudioso.
            De certo, o coiote nunca consegue pegar o papa-léguas, de tal forma que também nos frustramos ao não poder perceber o passado como foi, porém essa frustração, não se deve se abater sobre nós a tal ponto de renegar o passado assim como a produção sobre este, como tão bem explica Dosse ao dizer que está havendo “uma tendência secular... que hipertrofiou cada vez mais o sujeito do conhecimento, tendência cujas raízes se fixam no solo nietzscheano”[1].
            O coiote pode também nos servir de exemplo, não pelas suas malfeitorias, e sim pela sua persistência, pegar o papa-léguas é, então, a sua missão maior, assim, o historiador não deveria se frustrar ao saber que a verdade está lá inalcançável, e ele se aproximando cada vez mais desta, sem nunca se apropriar dela como um todo. O coiote anseia um banquete ao pegar o papa-léguas, o historiador pretende se deleitar com o doce sabor da verdade, em sua essência.
            Essa impossibilidade natural de apreensão leva alguns pensadores pessimistas a declararem fim da história:

“em ambos os casos [Nietzsche de um lado e Michel Foucault e Jacques Derrida de outro], houve uma crítica contundente à modernidade e à razão, ao progresso e ao sentido dos processos históricos, muito embora não fossem dadas nem alternativas, nem elaborados ‘novos’ projetos de ‘transformação social’(...)”[2].
           
            Baseado nesses autores o historiador outrora que tinha a verdade como alvo, se distancia cada vez mais desta à medida que a descarta como possibilidade real e como um fim para  seu trabalho. A história é a busca pela verdade do passado. Não nego, portanto, o papel subjetivo da interpretação que é passível de erros, mas que é atualizada a cada nova “descoberta” histórica, sendo assim um único autor não consegue agremiar na sua obra uma história total, já que no processo pesquisa-escrita ele abre lacunas para que outros historiadores tentem preenchê-las a posteriori, assim como o mesmo fez com os autores que o precederam.
            Nietzsche foi infantil ao dizer no Aforismo 481 que “não há fatos, mas sim interpretações”[3]. Para se interpretar algo é preciso que esse algo exista e eu o aceite como verdadeiro, a interpretação por si só não existe se a causa primeira, o fato, não existir. Existe o fato e as interpretações dos fatos, essas que podem ser díspares, mas que não podem de maneira nenhuma macular a idéia de que existe um fato verdadeiro preexistente e que minha interpretação falha e inconclusa não o abocanhará em sua totalidade.    
            A grande questão é admitir os limites do pensamento histórico-racional,  Nietzsche com a idéia do homem-instinto ( denominado por ele de super homem ou além do homem dependendo da tradução ), coloca a racionalidade em cheque já que o caminho teleológico Nietzscheano é o estabelecimento de uma nova moral que é amoral, o que demonstra a esquizofrenia de seu pensamento. O historiador, portanto, ao seguir a linha de Nietzsche descarta a possibilidade de uma construção racional da história e vê-la apenas como o palco da legitimação do forte em detrimento do fraco pela vontade de poder.
           




[1] Dosse, François. Le tournant interprétatif et pragmatique de l’historiographie française, mimeo, Recife, 1995.citado por: Falcon, Francisco. “Historicismo”: a atualidade de uma questão aparentemente inatual. Revista tempo, Rio de Janeiro, vol. 4 1997 p. 7
[2] Roiz, Diogo da Silva. O ofício de historiador: entre a ‘ciência histórica’ e a ‘arte narrativa’. IN: história da historiografia, ouro preto, número 04, março, 2010, p.258
[3] NIETZSCHE, F. A vontade de poder. Tradução de Marcos Sinésio B. Fernandes e Francisco José D. de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Roda Viva - Diálogos Sobre o Tempo

Rafael Santana Bezerra

                A imaterialidade que nos move ao futuro parece-nos, hoje, tão simples e natural. O compasso das alterações de seus minutos é personificado numa perfeição matemática que impressiona os ociosos. É a onomatopéia do progresso, tic-tac. Somos condicionados a senti-lo, quase adestrados a não concebê-lo de outra maneira. Os segundos dos semáforos atordoantes, caos da superpopulação metropolitana, é o tempo moderno, rasteiro, era da vivencia.
            Roda Viva encorpa-se num emaranhado de musicais de protestos políticos. A força exercida pelo Regime Militar produziu inevitavelmente uma espécie de contra-poder, letras tão significativas que superavam canhões. Inúmeras produções acadêmicas propõem com maestria essas análises da obra de arte em sua funcionalidade política. Afastando-me um pouco destas perspectivas, talvez, com uma errônea ousadia, gostaria de estabelecer uma breve interpretação das significações do tempo histórico neste período.
            A História não se repete. Talvez esta seja uma das máximas teóricas mais obedecidas. A elasticidade dos conceitos historiográficos produz a impressão nos ingênuos de uma igualação dos acontecimentos. Um erro que ignora o instante como um relâmpago que ilumina os passos da História, e que, imediatamente se esconde na escuridão do desconhecido. O fato histórico é somente esta partícula, visível por um momento, essa faísca do conhecimento acessível, ou ainda, um tempo saturado de agoras, de instantes.
Todas essas modernizações das ações humanas perpassam, quase que inevitavelmente, na ilusão da discriminação do estado de não-razão. Ou, ainda sob os moldes do racionalismo Hegeliano: O único pensamento que a filosofia traz para o tratamento da história é o conceito simples de razão, que é a lei do mundo e, portanto, na história do mundo as coisas acontecem racionalmente (A Razão na História p.53). Estabelecer unicamente a racionalidade como movimento humano histórico é predizer o sentido de predestinação.  
O sentimento é a forma inferior em que se pode existir qualquer conteúdo mental (p.58). Hegel ignora, absurdamente, vale ressaltar, uma das mais voluntariosas faculdades humanas, sem elas o homem não se comprometeria em distinguir-se da ordem, da força civilizatória, das formas de hegemonia. É através do estado instintivo, pela cólera, que se concretiza o improvável. Em Nietzsche, por contradição, o sentimento é aflorado, capaz, sobretudo, de relutar aos mandatos do A.I 5, de uma maneira geral, das formas de opressão: Além disso, todo homem de ação ama o seu ato infinitamente mais do que ele merece: e as melhores ações se realizam sempre num excesso de amor tal, que, mesmo quando são inestimáveis, elas só podem ser necessariamente indignas. (Considerações Intempestivas. P.77)
Roda mundo, roda gigante, roda moinho, roda pião, o tempo rodou no instante nas rodas do meu coração, Chico Buarque coloca-nos diante da continuidade histórica, ele busca as formas de alternativa, deseja alterá-las, mover a direção de um caminhar cego. Roda Viva é este sentido de eterno retorno, das desconcertantes alternâncias da criação e destruição, da continuidade e da descontinuidade. Seria, talvez, um dos maiores problemas dos historiadores: perceber o fim da permanência, o fim da obrigatoriedade de lineralidade progressista da História.
A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar, mas eis que chegar roda viva e carrega o destino pra lá... É também, a poetização das forças que destroem o sujeito da ação, que transfiguram o homem em marionetes do movimento de sucessão do civilizatório. A Roda Viva é o instrumento de fabricação do estado de bem-estar, da máxima do progresso neoliberal de uma sociedade brasileira moldada pelo espírito fascista, sacrificando os não-enquadrados ele produz os pensamentos numa esteira fordista.
Sua produção é o ritual triunfante da hegemonia, Chico Buarque nos propõe em similaridades Benjaminianas o desejo da luta, da crítica: Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela... O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
1967 possui uma dialética peculiar, a dos sentimentos. O prodigioso modernismo tão necessário e esperado no Brasil; o medo do novo sentido pelos tradicionalistas; a certeza da catástrofe pré-imaginada pelos esquerdistas; o ódio ignorante pelos comunistas, fruto de uma construção política. Os grandes festivais realizados pela Record sintetizam através da arte o pensamento dinâmico das constantes e não declaradas lutas entre a tradição e a globalização.
As sínteses desses conflitos metaforizam-se na realidade de um movimento (tropicalismo), na exatidão de dois instrumentos: a guitarra e o violão. O primeiro é a tecnicidade que chegou ao Brasil, é a expectativa do primeiro mundo, é a antropofagia moderna de 22 às adaptações de quarenta décadas. O segundo é a problemática de encaixilhar o vindouro às tradições, é o questionamento das identidades nacionais, do espírito de pertencimento, de unicidade. É um período de ruptura, de questionamento, de descontinuidade, de Roda Viva.

sábado, 12 de novembro de 2011

Diálogos com a TV ligada

Matheus Martins
O que é criar algo novo? Como realmente perceber que as ideais correspondem a um turbilhão de inovações, a um desconhecido? O pretexto da inventividade percorria-lhe a mente, enquanto sentado em frente ao computador, tecia comentários anacrônicos e simuláveis.
Confuso, ficara imaginado perder-se no tempo como uma imagem de Dali que, a pouco, vislumbra em um texto amigo. Cada segundo esparso daquela noite de sábado lhe parecia curioso demais para ser confidencial. Por que perder aquele instante, jogado no amontoado de idéias descartas e “esquecidas”? Esquecer, engraçado, era o que mais o fazia lembrar. As dúvidas e inquietações que nos primeiros ouvires dicotômicos lhe rompiam as sensações de completude. E aquela velha história que concebia, já não caminhava mais com ele. Talvez estivesse lá, no amontoado descartado.
“Só penso”, era isso, mais uma vez o amigo lhe influenciava. A história, quiçá, nem exista. Ela só é simplesmente pensada. Como um sonho, a história se mostrava uma projeção daquele inconsciente, o qual conhecera através das leituras de Freud. A história é sonhada, é desejada. Conseguia imaginar aquilo. Até mesmo lhe parecia plausível. Mas como prová-lo? Como destruir, ou desconstruir, “cientificamente” (que ironia) a cientificidade da história?
Poder e saberes, suas relações com a dominação constituída; aquilo não era seu. Não digo seu, de autoria, até mesmo por que todo esse emaranhado de redes de força, só lhe era apreensível por lentes, alheias até mesmo ao seu maior divulgador. Ou seja, usar de Foulcalt seria imitar, por demais, os seus interlocutores. A televisão ligada começava a lhe tomar atenção. Mas, não queria perder o entusiasmo. Era esse o seu diferencial, parecia mais um artista, cuja performance depende completamente do vôo da inspiração.  Por isto mesmo, essa era a visão que possuía da historiografia.
Passava por sua mente, uma vez mais, as críticas de alguns professores. Como era possível? Senhores já tão estudos e aparentemente dinâmicos, mas com a cabeça tão lacrada para novas perspectivas? A análise literária é totalmente dependente da historiografia para sua contextualização, porque a análise histórica só recorre a literatura como um curiosidade, um supor micro, ligado somente as relações artístico culturais.
A televisão ligada lhe fez advertiu, há ouvintes que pensam os filmes históricos narrativas fiéis, verídicas aos fatos como eles de fato ocorreram. “Erro de Crasso”.  A literatura tão pouco o era, mas sua importância não seria aquela. Nela – acreditava – estava contido, de forma bruta, o sistema de raciocínio, o pensamento de seu escritor; que neste era inscrito pela sua época, sua vivencia, seus sentimentos. Lugares, sensações... Tempo, idéias... sua história, bruta; pronta para ser sonhada e desejada, como um lapidador sonha a jóia antes de trabalhar o mineral.
Instantaneamente, se fez incompreendido, como se pode refletir que tanto filmografia quanto literatura, não reproduzem o passado em sua exatidão (longe disto); e simultaneamente, aspirar que a história o faça, ou que ao menos se aproxime desta tarefa, literalmente (e ironicamente) homérica.
Um olhar desconcertante, para um mundo que tão torto lhe incomodava, de tal maneira que mais lhe parecia um espelho. Violência se confunde com excitação, dialogava com as imagens do UFC. “O Brasil tem mais um campeão do mundo”, ria ao se contestar se o bairrismo recifense havia tomado as terras tupiniquins. Neste mesmo pensamento, sem perder muitas palavras (ao menos o sentido se conservara), entendeu como os marcos de factualidade histórica permeavam sua imaginação. Confessava para si mesmo, com muito pesar, que as âncoras eram necessárias, para que os veleiros da imaginação, não tomassem todos os rumos possíveis e impossíveis, se mantivesse estável tanto em tempestades como em calmaria.
Alguém riria muito com isto, algum dia. Mas, a tarefa de uma âncora, afirmou, não é segurar o navio eternamente, muito pelo contrário, bom navio é aquele que por muito resiste navegando. Como as obras de Dali ... Como o disco “Inédito” de Tom Jobim... A história deve ser desejada com calma, a espera de inspiração... Ser desejada, e evidenciada neste desejo. Não se fica em cima do muro. Não afirmar partido, não significa não ter partido, muito menos que não este não esteja presente no discurso. Tomou o CD de Jobim na mão, a tela simples lhe encantava de uma forma inexplicável. Concluiu que esta era a maior similitude que apreendera, daquele instante com a história: o enigmático e o indescritível , o arrebatamento do instante se expandindo em futuro, passado, presente...
Já era mais de meia noite; o sono lhe doía a cabeça, o teclado quente do seu portátil lhe suava as mãos. Estava decidido a deixar o texto por assim mesmo. Assim o fez...

Eu não acredito em contos de fadas: Considerações a respeito do meu conceito de história.

                                                                                                                            Por: Estevam Machado

Já estou cansado de me ver perguntado, tanto pelos meus amigos como por mim mesmo: mas afinal, o que é história? E quando tento me explicar sou bombardeado de réplicas que me fazem repensar algumas posições, porém tenho uma idéia nuclear que não consegui tirar da minha mente, talvez seja por causa de que eu realmente acredite nisso: a história é ciência.
            Os novos historiadores, dentre eles os historiadores artistas, teimam em ser dicotômicos creditando aos defensores da cientificidade ora uma ingenuidade que não perceba as tensões entre as classes ora uma forma maquiavélica de maquiar, de velar essas ditas tensões, a serviço da força manipuladora das classes dominantes. Os defensores da cientificidade, ou são ingênuos ou estão a serviço “do mal”.
            Isso porque os inimigos da cientificidade encaram tanto a universidade, como toda a sociedade num geral como um grande restaurante, em que eles são garçons que servem ideologias a torto e a direito.
            E ponho-me a defender minha posição mais uma vez: não sou adepto à questão da simpatia à maneira agostiniana: “Et nemo nisi per amicitian cognocitur” ( Não se pode conhecer ninguém a não ser pela amizade ), instituindo assim uma relação harmoniosa, passiva entre o eu e o outro, o sujeito e o objeto, o historiador e a fonte. Nem tampouco a tristeza se abateu sobre mim quando tive que ressuscitar Cartago como falou Flaubert: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage” ( poucas das pessoas compreendem o quanto tenho estado triste por ressuscitar Cartago).
            Porém mesmo não sendo adepto da questão da simpatia, não considero o espírito radicalmente crítico, sendo assim faço minhas as palavras de Marrou:

“Uma tal exacerbação do espírito crítico, longe de ser uma qualidade, seria para o historiador um vício radical,que o tornaria praticamente incapaz de reconhecer o significado real, o alcance, o valor dos documentos que estuda”[1]

           
No meu primeiro texto: A cientificidade da história – Refutações das ideias dos “historiadores artistas”, ao chamar os autores Nietzsche e Foucault de negacionistas, estava tentando explicar que principalmente o primeiro é um autor crítico aos moldes de que Marrou explica: “A crítica consegue demolir o edifício provisório de um conhecimento imperfeito, formula exigências úteis à reconstrução ulterior, mas em si mesma pouco contribui[2]. Até porque é mais fácil dinamitar uma construção do que erguê-la. 
Marrou entende a simpatia como estado construtivo e a crítica como a etapa destrutiva e é nessa relação dialética construção-destruição que  história se faz, como conquista progressiva do conhecimento do passado:

“Se o espírito crítico e a simpatia não são em si mesmos contraditórios, falta que estas duas virtudes sejam sempre fáceis de conciliar, que se encontrem igualmente representados no espírito de cada sábio. Mas a elaboração da história é o fruto de um esforço coletivo e os excessos de uns vêm corrigir as deficiências de outros. É útil ao progresso de nossa ciência que uma crítica exigente, e até mesmo injusta, venha despertar uma simpatia sonolenta prestes a deslizar para a complacência e para a facilidade.”[3]  

            E o amigo leitor deve estar se perguntando o porque do título? Entendo a história como um processo de racionalização do passado em que o historiador, está no meio tentando administrar o processo simpático em consonância com o processo crítico. Como dizia Aristóteles há muito tempo atrás, a virtude está no meio. E isso se adéqua a vida como também ao ofício de historiador.        





[1] Marrou, H. I. Do conhecimento histórico.3ª Edição. Editorial Aster, Lisboa, P.87
[2] Marrou, P. 89
[3] Marrou, PP. 88-9

terça-feira, 27 de setembro de 2011

História e Poder - Uma Análise do Texto “Verdade e Poder” de Michel Foucault.



Rafael Santana Bezerra
           
            A historiografia em seus estudos decompôs o poder através das instituições representativas: o Rei, a Igreja, o Estado. De uma maneira geral o poder centralizado. Escrevia-se a História baseando-se nessas formas de análise, na impressão de uma propriedade do poder. Foucault nos ensina como essas forças estão capilarizadas. Ele nos propõe uma analítica do poder cotidiano, são os seus exercícios nas relações familiares, nas fábricas, nas escolas e nas prisões, em qualquer lugar, coexistindo às relações humanas. Não é uma análise histórico-materialista assemelhando-se a modos de produção, não nos apropriamos do poder, não o possuímos, não o temos. Ele só existe em estado de ação, é molecular, ou ainda, microfísico, é independente do sujeito de escolha.
Além de desnaturalizar o sentido de possessão do poder, Foucault desmascara o julgamento moral desses estudos. Houve um consenso em classificar a ação da força como puramente negativa, ou ainda, somente repressiva. Antes era somente o poder como instrumento para disciplinar, punir, castigar, ferir, explorar. Exercer a força era essencialmente produzir efeitos maus sobre os indivíduos. Não havia a possibilidade de creditá-lo a um movimento criador. O poder em Foucault é também criativo. É no momento do exercício, da ação, que o poder cria. Ele constrói discursos, formações familiares, sexualidades, ou ainda, prazeres. O poder cria verdades, loucuras, delinqüências.
Portanto, este teórico é fundamental para uma análise da História, não das formas pretéritas já estabelecidas, mas, garantido uma originalidade necessária e capital para o desenvolvimento do estudo de uma História/Poder:

Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. (FOUCAULT. 2003, p. 114);

Hoje, não podemos acreditar numa moralidade universal, numa ética que estaria presente em todos os profissionais da História. É improvável uma concepção de consciência coletiva. As verdades saltam, acendem e apagam-se nos tempos históricos. Não se trata de uma negação de todas as formas de verdades, é somente, colocá-las em contrariedade. É incluí-las num jogo de desconstrução. É dar movimento à concretude dos conceitos.
A luta maior deve-se a essas formas de manipulação dos direitos de declaração. Não na sua forma de alternativa, mas sob sua configuração de hegemonia. É através dessa nova óptica que se deve observar a História. Ela é muito mais do que simplesmente interpretação de fatos históricos.
A História é instrumento das vontades de poder. É em si mesmo uma materialização da vontade de saber. Apoderar-se da reconstituição do passado é uma relação já definida, um saber/poder: “O exercício do poder cria perpetuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder[i]”. É, também, o poderio de definir os campos do conhecimento, suas constituições, suas delimitações, suas obrigações, suas finalidades e instituições.
Acreditar numa História inocente é um erro gravíssimo. É ignorá-la como arma. Como instrumento daqueles que possuíram o direito de constituir seus limites. Além disso, é dissolver sua importância. Ela é aparelho não somente daquelas influências de poderes evidentes, mas, sobretudo, de um emaranhado de forças que se sucedem e se transformam a cada instante.

Diziam os positivistas que os mortos governavam os vivos, o passado o presente. Ao reler a História com os olhos de hoje talvez pudéssemos dizer que os vivos, ao tentar reconstruir o passado, tentam governar os mortos na ilusão de poderem governar a si próprios. Ou, em versão pessimista, na frustração de o não poderem fazer. (CARVALHO. 1999, p.14)

            As historiografias nacionais exemplificam exatamente essa afirmação, elas culpam seus inimigos de suas mazelas, controlam o passado sob a rédea de seus domínios presentes. Os americanos fizeram entender que a Segunda Guerra foi fruto, sobretudo, da personalidade sádica de Hitler. Esquecem, ou ainda, fazem apagar da escrita da História todas as igualdades que construíram um campo de guerra. Anulam seus interesses, colocam-se como provedores da liberdade individual característica do neoliberalismo. É a estatua da liberdade contra os signos fascistas.
            Os marxistas, aqueles mais ferozmente dogmáticos, fazem construir uma História redesenhada sobre valores morais. Os proletariados assemelham-se na realidade a uma categoria penosa, merecedora de recompensas vindouras. Enquanto, aos burgueses, creditam todas as mazelas que a monopolização das riquezas constitui. É a História desenhada sob o enredo antagônico do Bem e do Mal.
            Stalin no auge de seu poder eliminou a figura representativa de Trotsky dos livros de História de toda a União Soviética. Getulio Vargas construiu uma imagem populista, financiou inúmeros intelectuais, construiu um governo vitorioso, através da negação de um passado de atrasos e a promessa de um futuro de progresso.
Juscelino Kubitschek criou o ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros -, que tomou a forma de difusão intelectual de seu modelo governista, o nacional-desenvolvimentismo. Era a validação do progresso sob verdades cientificas. Não se trata, somente, de colocar a História como investigadora dos conteúdos verdadeiros, mas, sobretudo, de interrogar as forças que validam certos conteúdos como falsos e verdadeiros, uma forma de compreender a relação entre o poder/saber.
Hoje, as produções intelectuais estão cada vez mais segmentadas, talvez este seja um assunto para outro debate, contudo, podemos perceber que os limites entre as disciplinas estão sendo gradativamente delineados. O conhecimento segue o ritmo das fábricas, do fordismo, do isolamento, da segregação. Eles são separados, é o perigo da união que fraciona os saberes.
As preocupações dos historiadores ao produzir suas obrassão cada vez mais salientes. Há um medo de ultrapassar certas barreiras, de invadir o campo da filosofia ou da sociologia, da literatura ou da filosofia, por exemplo. Esse medo revela não somente o querer distinguir-se, mas o desprestígio que certas disciplinas carregam na modernidade.
O historiador inquietado com as formas de hegemonia, àqueles que estão em contradição à conformidade devem se preocupar não em distinguir os “objetos” da História ou da Sociologia, mas, especialmente, entender como foram construídas condições objetivas dessas distinções, é procurar perceber como foram construídas categorias de segregação. É preciso então, livrar-nos dessas amarras, dessas prisões teóricas que insistem em mecanizar a produção historiográfica.
É através dessas análises, das constituições dos saberes, que questiono a cientificidade histórica. A modernidade classificou num patamar incrível de importância os conhecimentos científicos, nessa lógica fazer uma História não cientifica é menosprezar-se.
É uma longa busca da compreensão das condições macro-estruturais que as compõem. São as condições políticas, as estruturas de pensamentos, as condições materiais de uma época, a economia, as relações humanas. Houve, na realidade, uma busca dos métodos historiográficos para enquadrar-se nos momentâneos e prestigiosos dispositivos de verdade, desta forma força-se uma adaptação dos objetos a esses regimes constituintes do conhecimento. Existe todo um aparelho que limita o campo do verdadeiro, o historiador deve ampliá-los, ou quando necessário destruí-los
            É uma História inquietada com a formação do conhecimento. Sobre o inconstante questionamento de como o direito de dizer o que é importante estudar foi apropriado numa construção histórica. É uma preocupação também, acerca do que é estabelecido num certo domínio do verdadeiro e até onde vão os objetos de estudo, qual a distinção dos métodos. “Isto é, uma forma de História que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc.” (FOUCAULT, Pág7).
Não há equilíbrio, não há ausência, não há se quer imparcialidade. A História é também um exercício de escolhas dentro dos limites impostos. É a escrita do historiador sob suas concepções políticas, é o que ele defende ou o que ele julga que transpira por sua produção histórica.
A História nunca estará ausente dessas redes de poder. Exatamente por que ela no instante que se configura como conhecimento é automaticamente uma vontade de saber. A História é um poder materializado em conhecimento. Na realidade a intenção não é o desvencilhamento do poder na História. Não há essa possibilidade. Contudo, o desejo do genealogista é colocar o plano das alternativas. A ciência que procura enquadrar em seu domínio os conhecimentos históricos anula a possibilidade das especificidades, do jogo das analogias. Alimenta-se a ilusão, nessas ultimas gerações, de uma flexibilidade científica, contudo, estamos jogados, encobertos num jogo de limites, numa soberania de produção intelectual.
Não se tem a pretensão impossível de retirar o exercício do poder da História. Mas, lutar contra as formas de hegemonia do conhecimento. Fazer com que ela caminhe pelo seu amplo campo de opções. Devemos procurar questionar e transformar os regimes políticos das constituições das verdades, ou ainda sobre as palavras de Michel Foucault, a História deve: “Interrogar as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e conhecimento, não em seus conteúdos verdadeiros ou falsos, mas em suas funções de poder/saber”.

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento. (FOUCAULT, 2003, p. 14)

Não há mais espaço neste século para as formas centralizadas e representativas de poder. A ideologia difundida de liberdade e democracia tomou conta do imaginário popular, o sentido do exercício de poder está cada vez mais mascarado. O panóptismo é latente, consome a civilização moderna, retiraram-se os focos do poder, tornaram-se invisíveis, inconstantes e ainda mais inseguros e perigosos. Os conflitos são menos evidentes, estamos entregues num jogo de ilusões.
Diante de todo esse novo panorama histórico, num mundo onde a cultura globalizante insiste em enforcar as identidades locais, lugar onde as lutas se mascaram em protestos online, num campo onde o pensamento é duramente aniquilado pelos programas televisivos, deixo um questionamento que no futuro ambiciono responder. Alguns podem considerá-la banal, mas é fundamental para tudo aquilo que um dia pretendo conquistar: Qual o papel do intelectual no século XXI?